Esse comportamento essencialmente racista da referida juíza, não condiz com a índole e a tradição da nação brasileira e, principalmente, com a filosofia, postura e orientação do Poder Judiciário brasileiro.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

  1. Considerações preliminares

A Juíza Inês Marcharek Zarpelon cometeu um crime de racismo (injúria racial) ao condenar uma pessoa pobre e, por ser negra, considerou que a mesma integrava determinado “grupo criminoso” aumentando-lhe a pena aplicável e atribuindo-lhe esse fato, absurdamente, “à sua raça negra”, e também a razão suficiente para considerá-la “integrante do referido grupo criminoso”1. Vejamos a justificativa da ilustre magistrada na dosimetria da pena, ipsis litteris:

"Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança a população, pelo que deve ser valorada negativamente".

Afirmou, Sua Excelência, que "sobre sua conduta social nada se sabe", mas a julgadora presumiu sê-lo "integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça", e reconhecendo, implicitamente, a falta de prova, então presumiu, por que o pobre réu, e ainda negro, "agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento” (sic) e ainda o “acusou” de ser culpado, com os demais, por que " causavam o desassossego e a desesperança a população"!

 Parece-se com aquele ex-magistrado, que destacou em sentença, que não havia prova nos autos, mas ele tinha “a convicção da culpa de Lula” para condená-lo, referimo-nos, logicamente, ao Bel. Moro! Demonstrou nessa passagem, a digna magistrada, que além de racista não sabe que qualquer condenação exige prova cabal, bem como qualquer agravação no cálculo da pena exige demonstração concreta de sua ocorrência.  Postura como essa da dita magistrada envergonha a instituição a que serve, presta um desserviço à Justiça penal e desacredita a sua função perante a sociedade.

Esse comportamento essencialmente racista da referida juíza, não condiz com a índole e a tradição da nação brasileira e, principalmente, com a filosofia, postura e orientação do Poder Judiciário brasileiro. Certamente, a conduta da juíza Inês Marcharek Zarpelon deve ser a exceção que confirma a regra no âmbito do Poder Judiciário paranaense. Para combater essa postura funcional, bem como a orientação discriminatoriamente racista da referida magistrada, para que não inspire outros colegas seus, deve ser exemplarmente punida para que condutas como essa nunca mais se repita! Embora não apague essa chaga criada pela julgadora, acrescida da flagrante injustiça para com esse cidadão, pelo menos, que sirva de exemplo de que o juiz não pode tudo e não tem o direito de adjetivar e discriminar a pessoa de nenhum condenado e, muito menos, fazer afirmações de cunho eminentemente discriminatória, como essa.

A condenável conduta de Sua Excelência, que fundamenta a agravação da pena aplicada, invocando questão puramente racial, especialmente por se tratar de jurisdicionado negro e pobre, além de presumir, por esse aspecto, sua participação "em grupo criminoso em razão pertencer a  raça nega", afirmado literalmente na sentença. O conteúdo dessa decisão é indigna de uma magistrada em um Estado democrático de direito e, ao mesmo tempo, demonstra que não está à altura da grandeza de sua instituição, que tem relevantes serviços prestados ao longo e sua história. A postura criminosa de referida juíza, na 1ª Vara criminal de Curitiba, envergonha a instituição a que pertence, o Poder Judiciário do Estado do Paraná. A rigor, a douta juíza deve pedir desculpas ao povo brasileiro e, principalmente ao condenado, devendo ser submetida a um processo criminal pela prática de injúria racial, além de dever ser afastada do exercício jurisdicional pelo próprio Poder Judiciário, por conduta incompatível com exercício da magistratura. Com a palavra o CNJ, no plano administrativo, com o devido e necessário afastamento do exercício jurisdicional, além de dever responder criminal e civilmente pelo gravíssimo ato que praticou.

Na verdade, acabou apresentando um pedido de desculpa explicativo, ou seja, mais uma justificativa de sua condenável ação de magistrada do que propriamente um pedido de desculpas, e sete ou oito de explicação inustificaveis2.

  1. A prática de injúria racial, qualificada como injúria preconceituosa

A lei 9.459, de 13 de maio de 1997, criou tipo penal do crime de injúria, conhecida como injúria racial, nos seguintes termos: “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. Pena — reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa”. Cumpre destacar, no entanto, que essa "injúria racial" (§ 3º no art. 140 do CP), não se confunde com o crime de racismo previsto na lei 7.716/89, embora o objeto de ambas infrações sejam semelhantes, mas apresentam algumas diferenças marcantes. Na verdade, embora a injúria racial e o crime de racismo sejam crimes distintos, praticados por condutas igualmente diferentes, a criminalização de ambos têm, como finalidade, a pretendida igualdade constitucional, e, dessa forma, o legislador procura coibir toda forma de discriminação, preconceito e intolerância, que acompanha a civilização através dos tempos. O crime de injúria racial (§ 3° do art. 140 do CP) ofende a honra e a dignidade de pessoa determinada, com punição de um a três anos de reclusão, prescrevendo, in abstracto, em oito anos a partir da data do fato. Aquele é crime de ação pública incondicionada e esta - a infração penal praticada pela magistrada do Paraná - é crime de ação pública condicionada à representação do ofendido.

Ademais, o fundamento político-juridico da alteração e criminalização da injúria racial reside no fato de que a prática de crimes descritos na Lei n. 7.716/89 (preconceito de raça ou cor), não raro, eram desclassificados para o crime de injúria, por isso, e por sua gravidade, houve a necessidade de criação de uma injúria especial para proteger esses fatos. Acreditando na injustiça de muitas dessas desclassificações, o legislador, em sua política criminalizadora, resolveu dar nova fisionomia às condutas tidas como racistas - a exemplo da conduta mencionada da magistrada paranaense - definindo-as como injuriosas, com boa elevação da sua consequência jurídico-penal. Será, portanto, preconceituosa ou discriminatória quando a ofensa à dignidade ou decoro utilizar elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. O maior desvalor da ação, nesta modalidade de injúria - superior às injúrias tradicionais, justifica uma maior reprovação penal e, consequentemente, sua maior punição, como prevista no dispositivo supra citado3.

Para finalizar, apenas um comentário a mais este diploma legal, autodenominado Estatuto do Idoso, constitui a amostra mais eloquente das incoerências do legislador contemporâneo, que é incapaz de manter o mínimo de harmonia e logicidade nas excessivas e, normalmente, inadequadas alterações do vigente sistema jurídico-penal. Nessa linha, somente para exemplificar, olvidou-se de disciplinar as hipóteses em que a pessoa idosa figura como sujeito ativo de alguma infração penal (afinal, o estatuto é de proteção do idoso), verbi gratia, a contagem, pela metade, do lapso prescricional (art. 115 do CP). Nesse sentido, esqueceu-se de criar uma atenuante legal ou uma causa especial de diminuição da pena nos crimes praticados por idosos.

Com efeito, dentre tantas impropriedades, pode-se destacar, especificamente, na análise desse diploma legal, a diversidade de expressões utilizadas para definir quem pode ser tratado, legalmente, como “idoso”: “pessoa idosa” (art. 140, § 3º); “com idade igual ou superior a 60 anos” (art. 183, III); “maior de 60 anos” (arts. 61, caput, 141, IV, e outros). Nessas circunstâncias, obedece-se ao disposto no art. 1º da Lei n. 10.741/2003, que proclama: “É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos”. Não resta dúvida de que tais locuções são utilizadas com o mesmo significado, isto é, como sinônimas de pessoa idosa. Nossa insatisfação com o mau gosto e impropriedades legislativas não chega ao ponto de sugerir outra interpretação, ou seja: a partir da vigência do cognominado Estatuto do Idoso, deve-se, necessariamente, considerar “pessoa idosa” aquela “com idade igual ou superior a 60 anos”. Contudo, para efeitos de atribuir-se a responsabilidade penal a alguém, é indispensável que eventual sujeito ativo de alguma infração penal contra o “idoso” tenha plena consciência dessa condição da indigitada vítima.

  1. Elemento subjetivo especial da injúria preconceituosa

Desde o advento da presente lei, têm-se cometido equívocos deploráveis, pois simples desentendimentos, muitas vezes, envolvendo autoridades persecutórias, sem qualquer comprovação efetiva de sua ocorrência e, principalmente, do elemento subjetivo, têm gerado prisões e processos criminais de duvidosa legitimidade, especialmente quando envolvem policiais negros e se invoca, sem qualquer testemunho idôneo, a prática de “crime de racismo”, ou, então, em simples discussões rotineiras ou em caso de mau atendimento ao público, quando qualquer das partes é negra, invoca-se logo “crime de racismo”. Ignora-se, frequentemente, (inclusive que o crime de racismo {Lei. 7.716} não se confunde com injuria racial ou discriminatória), independentemente do que de fato tenha havido. Em sentido semelhante, por sua pertinência, merece ser citada a percuciente, na época, crítica do saudoso Damásio de Jesus sobre o novo equívoco do legislador: “Andou mal mais uma vez. De acordo com a intenção da lei nova, chamar alguém de ‘negro’, ‘preto’, ‘pretão’, ‘negrão’, ‘turco’, ‘africano’, ‘judeu’, ‘baiano’, ‘japa’ etc., desde que com vontade de ofender-lhe a honra subjetiva relacionada com a cor, religião, raça ou etnia, sujeita o autor a uma pena mínima de um ano de reclusão, além de multa, maior do que a imposta no homicídio culposo (1 a 3 anos de detenção, art. 121, § 3º) e a mesma pena do autoaborto (art. 124) e do aborto consentido (art. 125). Assim, matar o feto e xingar alguém de ‘alemão batata’ têm, para o legislador, idêntico significado jurídico, ensejando a mesma resposta penal e colocando as objetividades jurídicas, embora de valores diversos, em plano idêntico”4.

Contudo, vivemos outros tempos, onde as ofensas raciais e sexuais ampliaram-se e tomaram níveis insustentáveis, demandando maior rigorismo, mais fiscalização e punição, exemplarmente rigorosa, para combater essa chaga da humanidade, qual seja, principalmente, a discriminação racial e sexual. Nessas ofensas discriminatórias de raça e de gênero dispensa-se a exigência do elemento subjetivo especial do tipo, porque em ambas ele está ínsito na conduta em si, isto é, na própria manifestação de cunho racial ou sexual. Venia concessa, nesses aspectos, relativamente à discriminação de raça, cor e sexual, mudamos nosso entendimento anterior.

Por outro lado, recomenda-se, mais que nos outros fatos delituosos, extrema cautela para não se correr o risco de inverter a discriminação preconceituosa, com o uso indevido e abusivo da proteção legal. A rigor, a simples referência aos “dados discriminatórios” contidos no dispositivo legal - com exceção de raça, cor, gênero sexual e deficiência - regra geral, é insuficiente para caracterizar o “crime de injúria racial ou sexual”. É bom que se destaque, por outro lado, que a inafiançabilidade  e imprescritibilidade (art. 5º, XLII, da CF) só é prevista para o crime de racismo (Lei 7.716), distinto, portanto, da injúria racial ou preconceituosa.

Para a configuração da injúria por preconceito é fundamental, além do dolo representado pela vontade livre e consciente de injuriar, também a presença do elemento subjetivo especial do tipo, constituído pelo especial fim de discriminar a vítima, com o objetivo de atingir a sua honra e a sua dignidade como pessoa humana, ofendendo-lhe, por razão de raça, cor, etnia, religião ou origem, a honra e a dignidade do ser humano, pois, na verdade, o (a) ofensor(a) deseja humilhar e diminuir a vítima na tentativa de demonstrar-lhe que ela é inferior ao ofensor (a). Na realidade, o (a) ofensor(a), nessas circunstâncias, pelo contrário, monstra que ele(a) é inferior à vítima que deseja agredir e ofender, demonstrando que ele(a) ofensor(a) é indigno(a) - como no caso daquela juíza do Paraná - da honraria que se julga ser detentor (a), na medida em que é incapaz de respeitar a dignidade e honra de seu semelhante. Trata-se, indiscutivelmente, de uma das mais graves ofensas que pode atingir o ser humano, cujo ofendido não pode revidar, não pode defender-se e, ademais, sofre essa discriminação desde sempre, causando-lhe angústia, sofrimento, depressão, por vezes incurável, legitimando, inclusive, a busca da devida reparação de dano no âmbito judicial, e tem que ser erradicada da sociedade contemporânea de uma vez por todas.

No entanto, como destacamos acima, o crime de racismo, assim considerado como tal, não se confunde com a injúria racial ou sexual, que é um crime contra honra, realmente grave, tanto que é um crime qualificado, com limite mínimo e máximo especialmente para essa natureza de injúria (um a três anos de reclusão). Enfim, recomenda-se muita cautela, especialmente quando a suposta vítima seja alguma autoridade repressora - para não invocarem indevidamente essa situação - ou seja, para evitar excessos e coibir as transgressões legais efetivas, sem contribuir para o aumento das injustiças, que, muitas vezes, ocorrem.

  1. Pena e ação penal da injúria preconceituosa

A despeito de todos aplaudirmos o advento da “Lei do Racismo” para combater grandes parcelas da população, adeptas a preconceitos raciais e religiosos, que não condizem com a índole e a tradição da nação brasileira, reconsiderando posição anterior reconhecemos a necessidade, conveniência e oportunidade, quanto ao maior sancionamento penal para essas infrações. Referida sanção equipara-se à punição aplicável ao homicídio culposo, afora a existência de eventual majorante que pode duplicá-la, observando, a nosso juízo, o princípio da proporcionalidade exigido, inclusive, pelo nosso texto constitucional.

No entanto, a nosso juízo, a Lei n. 9.459/97, que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a injúria por preconceito, equivocou-se quanto à natureza da ação penal correspondente. Realmente, a despeito da correção sancionatória, manteve-a de exclusiva iniciativa privada, criando grande constrangimento às vítimas potenciais esse tipo discriminatório de infração contra a honra e a dignidade da pessoa. Com efeito, a maioria delas são pessoas simples, de pouco ou nenhum poder aquisitivo, como poderão contratar advogado competente para representá-las?

Sem pretender constranger o Estado, a política criminal adotada, no particular, é preconceituosa, para usar um trocadilho, pois trata de um tema tão relevante, causador de tantas injustiças às minorias que menciona, e, no entanto, deixa a ação penal, isto é, o uso do aparato estatal, à mercê da exclusiva iniciativa privada, como se para o Estado não se tratasse de um assunto relevante e se como se bem jurídico lesado (honra e dignidade) não justificasse a movimentação oficial da máquina judiciária. Trata-se, inegavelmente, de uma postura discriminatória do legislador, que, ao “desincumbir-se” de uma missão espinhosa, qual seja, criminalizar mais fortemente a conduta injuriosamente discriminatória, “deu com uma mão e tirou com a outra”: ou seja, criminalizou a conduta racista ou discriminatória, mas não impôs a obrigatoriedade da ação penal, isto é, ao não determinar que se trata de crime de ação pública incondicionada!

Esta é uma reforma - das  tantas que ocorrem com muita frequência - necessária, somente para transformar essa ação penal em pública incondicionada, caso contrário, como a Nathan ...  daquele crime da magistrada do Paraná, poderá contratar advogado, com poderes especiais, para processar logo uma juíza, pela prática de um crime racial?!

O legislador, em 2003, ao legislar sobre o Estatuto do Idoso, desperdiçou mais uma chance de reparar o equívoco, contemplando como hipótese de injúria preconceituosa a ofensa em razão da condição de pessoa idosa e portadora de deficiência, e não exigindo ação penal pública para as formas de injúria qualificada. Contudo, finalmente, parece que ouvindo e recepcionando nossa contundente crítica quanto a esse grave equívoco, o legislador brasileiro, alterando a redação do parágrafo único do art. 145, determina que a ação penal do crime de injúria preconceituosa passa a ser de natureza pública condicionada à representação do ofendido (Lei n. 12.033, de 29-9-2009). Melhorou um pouco, mas ainda não o suficiente, pois precisa ser pública incondicionada, como defendemos acima.

______________

1- Proc. 0017441-07.2018.8.16.0013, 1ª Vara Criminal da Comarca de Curitiba, juiz Inês Marchalek Zarpelon.

2- "A respeito dos fatos noticiados pela imprensa envolvendo trechos de sentença criminal por mim proferida, informo que em nenhum momento houve o propósito de discriminar qualquer pessoa por conta de sua cor. O racismo representa uma prática odiosa que causa prejuízo ao avanço civilizatório, econômico e social. A linguagem, não raro, quando extraída de um contexto, pode causar dubiedades.
Sinto-me profundamente entristecida se fiz chegar, de forma inadequada, uma mensagem à sociedade que não condiz com os valores que todos nós devemos diuturnamente defender (...).

3- Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Crimes contra a pessoa, 2ª ed., Sao Paulo, Editora Saraiva jur,  2.020, p. 486/7.

4- Jesus, Damásio E. de, Direito Penal, 22a ed., São Paulo, Editora Saraiva, 199, p. 225-6.

https://www.migalhas.com.br/depeso/332036/juiza-do-parana-comete-crime-de-injuria-racial-ao-sentenciar-uma-pessoa-negra

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